A devoção científica também estava nos elogios dirigidos ao ex-ministro pelo professor Haddad – membro da quadrilha que revolucionou a ciência da corrupção – e na troca de afagos entre o governador Dória e Lula, PhD em subtração
Se você acha que os elogios comovidos de Fernando Haddad a Henrique Mandetta têm alguma coisa a ver com enfrentamento de epidemia, você está aprovado como figurante no show de simulação e confinamento. Você com certeza também viu no súbito enlace de João Dória com Lula uma conjunção de forças democráticas pelo bem da saúde pública. Governador, ex-ministro, ex-presidiário e ex-suplente de presidiário certamente estão juntos nesse enredo para ajudar você.
Todos sabem que o mais importante numa emergência sanitária é ter autoridades falando sobre a tragédia 24 horas por dia, de forma que o público não se distraia com besteira. Foi assim que o país assistiu durante pelo menos um mês ao ex-ministro Mandetta falando um pouco de tudo – das informações gerais sobre o combate ao coronavírus a reflexões, projeções, correção de projeções, expectativas, desabafos, teorizações sobre o enclave entre o SUS e a democracia, digressões sobre a importância do diálogo com os traficantes de drogas e exaltações à ciência.
Nessa parte da elegia científica faltou só um detalhe que, por coincidência, foi abordado pelo seu substituto, Nelson Teich, logo na primeira entrevista: a paralisação da sociedade armou uma bomba mortífera na saúde da população.
O novo ministro não usou essas palavras e evitou o tom de alarme, mas foi muito claro ao reportar uma perspectiva que era óbvia, e mesmo assim tinha sumido das preocupações oficiais: a suspensão de exames, tratamentos e diagnósticos de todos os males que não fossem coronavírus vai fazer explodir no curto prazo um quadro geral de doenças agravadas em estágio avançado. Para muita gente será tarde demais. Exames, tratamentos e diagnósticos são recursos científicos. A história vai dizer se a ciência foi atropelada pela retórica.
A devoção científica também estava nos elogios dirigidos ao ex-ministro pelo professor Haddad – membro da quadrilha que revolucionou a ciência da corrupção – e na troca de afagos entre o governador Dória e Lula, PhD em subtração. Todos unidos pelo teorema da paralisia geral, com propósitos que, considerando seus currículos e prontuários, só podem ser humanitários.
Se considerarmos, com certa boa vontade, que ficção científica também não deixa de ser ciência, Dória deu sua contribuição com as equações ornamentais do lockdown de São Paulo. Um homem à frente do seu tempo (2022), o governador esteve entre as primeiras autoridades a anunciar o fechamento geral. Depois recuou um pouco – sobre fábricas, por exemplo – para não parecer que desejava paralisar por paralisar. Mas não deixou de ameaçar na primeira hora os agentes econômicos, constrangendo-os com a advertência de que não era hora de empresário pensar em lucro. Depois ameaçou prender na rua o cidadão que desrespeitasse a quarentena.
Nenhum cientista no mundo ousou estabelecer um modelo matemático relacionando de forma exata percentual de confinamento, progressão da epidemia entre vulneráveis e consequente expansão de demanda por leitos de UTI. Mas as autoridades de São Paulo dizem que têm esse modelo – e que se a quarentena não chegasse aos níveis determinados por elas o sistema hospitalar iria colapsar em exatos 15 dias. Ciência é tudo – e chute é para os fortes.
Há países com isolamento total – a maioria – e há outros com isolamento parcial, focado nos grupos de risco e nas atividades que provocam aglomeração. No balanço entre resultados melhores e piores contra a epidemia nenhuma fórmula de combate está consagrada – é tudo hipótese e tentativa. Mas em alguns lugares o fechamento geral virou dogma.
Se não é ciência e não é religião, só pode ser política.
Guilherme Fiuza - Jornalista
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