Outra semana passou e os mais de mil brasileiros mortos por dia não conseguiram ocupar a primeira posição entre as preocupações da mídia e das autoridades. Desta vez, preteridos pela discussão entre o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, e o Ministério da Defesa, com apoio, em nota oficial e na representação à Procuradoria Geral da República, dos chefes das três armas.
Uma parte dos analistas correu em socorro ao ministro Mendes, atribuindo a ele a intenção política de alertar as Forças Armadas sobre os riscos do engajamento com o governo Bolsonaro. Outros, menos generosos, viram na declaração causadora da polêmica, um deslize, especialmente pela referência a um genocídio ao qual o Exército estaria se associando.
Para o futuro do Supremo Tribunal Federal e da imagem do Exército no Brasil talvez fosse mais conveniente abrir outra discussão: devem fazer parte das rotinas ou obrigações de ministros do Supremo Tribunal Federal o ativismo verbal com diárias aparições em redes sociais, mídia tradicional, seminários, lives para a discussão de temas que passam ao menos longe de questões estritamente jurídicas, ainda que os ministros exibam cultura, didática e interessantes posições pessoais?
Nos Estados Unidos, para citar o exemplo apenas das últimas semanas, a Suprema Corte tomou duas decisões importantes, de imensa repercussão política e social, uma envolvendo direitos da comunidade LBGT e outra sobre a necessidade de publicidade da declaração de imposto de renda do Presidente Trump.
Detalhe: as decisões foram comunicadas aos norte-americanos por uma nota oficial, horas depois da sessão da Corte que obviamente nem foi televisionada nem seguida por entrevistas de qualquer dos ministros.
O antigo conceito que “os juízes falam nos autos” tornou-se superado nestes tempos de intenso e desejável debate através de tantos meios de expressão e de comunicação? Ou, ao contrário, a Babel moderna recomendaria ainda mais fortemente que o Judiciário preserve sua autoridade, tão necessária em momentos de ameaças à democracia, afastando-se do debate político e restringindo-se ao cumprimento de seu papel constitucional?
O Supremo, por coerência, não deveria evitar os erros que tanto critica na Lava Jato, em particular a postura midiática, a overdose de aparições e opiniões, muitas messiânicas dos procuradores de Curitiba? Lembre-se que o extraordinário papel por eles desempenhado no combate à corrupção acabou prejudicado por aquelas atitudes. A postura, neste aspecto, de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal contribui para o desempenho das funções, mais requeridas que nunca, da Corte ou reproduz o erro que ela aponta em Curitiba?
Voltemos ao outro lado da questão. Se um ministro do Supremo é criticado pelos militares por, aceitemos, um exagero verbal, o que dizer das recentes e nada democráticas ou sensatas manifestações de generais-ministros?
E chega-se, então, ao centro da questão: as Forças Armadas, em particular o Exército, tomaram uma decisão de caráter político ao deixarem-se integrar e envolver com o governo e, portanto, suas decisões, seus erros, seus acertos e sua popularidade. Deveriam ter incluído em suas avaliações prévias a inevitável conta a pagar quando embarca-se em um governo qualquer. E consequências na imagem dos militares junto à opinião pública brasileira, tão dificilmente reconstruída da redemocratização para cá. A cada general contemplado com altas funções no governo Bolsonaro, haveria e há um custo. E este, como gostam de dizer os jovens da Faria Lima, deveria estar precificado quando da decisão de apoiar o governo.
Não faltará quem contra argumente que militares da reserva não expressam nem representam as Forças Armadas, o que é uma boa retórica, mas uma verdade incompleta. Só que nada, nem a retórica, poderia explicar uma Secretaria Geral de Governo, no coração do Palácio do Planalto, exercida por um integrante do Alto Comando do Exército. Ou, tema que provocou a polêmica, um general sem qualquer histórico ou vínculo profissional com saúde, assumindo o comando do combate à maior tragédia sanitária que já vivemos.
Talvez, então, possamos encontrar nos personagens da crise desta semana um denominador comum. Os ministros do Judiciário, acometidos de ativismo verbal; os militares, seduzidos pelos riscos da vinculação política com governos; e os procuradores midiáticos –todos são essenciais ao país que estamos sofridamente tentando construir. Especialmente se cada um compreender os limites de seus papéis. Ou, na boa e velha linguagem do futebol, se guardarem posição.
Antônio Britto - jornalista, executivo e político brasileiro
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