terça-feira, 1 de setembro de 2020

A traição de Odessa ✰ Artigo de Vitor Bertini

Na Av. Roosevelt, em Porto Alegre, havia um açougue. Nos fundos do açougue havia um galinheiro. E no galinheiro havia Odessa, a galinha.
Todas as galinhas que por ali nasciam tinham destino certo: mortas, nuas, arrepiadas e penduradas dentro do balcão gelado de pernas para cima, menos Odessa.
Odessa era diferente. Bábel, o açougueiro, havia lhe dado o nome em homenagem à sua cidade natal – cidade, ele dizia, onde viveu seu ídolo Bénya Krik, o Rei, e de onde as pessoas partem quando podem. Ninguém sabia quem tinha sido Bénya Krik, nem onde ficava Odessa.
Certa tarde, a rotina da vizinhança foi quebrada e a gritaria denunciou o segredo dos privilégios de Odessa, a galinha nunca sacrificada. Odessa havia alçado vôo, conforme o destino de seu nome. Do chão do galinheiro, em vôo raso por sobre a cerca ganhara o telhado da casa que abrigava o açougue e agora, em um equilíbrio incerto, repousava nos fios da companhia de energia elétrica. Dalí, para a queda em cima do ônibus que atendia o bairro foi necessário apenas os gritos dos passantes.
Bábel ainda arrancava os cabelos e chorava sua dor quando o Linha 4, o velho Navegantes, apontou na Av. Roosevelt em seu trajeto de retorno trazendo de volta, sobre seu teto, altaneira como nunca, Odessa.
A alegria dos que assistiam à cena deu lugar ao espanto quando Bábel, abraçando a galinha que sabia voar, cortou-lhe o pescoço.
O bairro, naquele dia, começou a saber como era Bénya Krik, o ídolo de Bábel.
Vitor Bertini - Escritor

Nenhum comentário: