A cada dia que passa, observando a evolução dos números de novos diagnósticos e de óbitos levados à conta da covid-19, mais me convenço de que iremos conviver com essa doença por muitos meses.
Produzir imunidade ampla em relação ao vírus é tarefa gigantesca, de eficácia incerta, para as calendas do ano que vem, e olhe lá. Não há segurança sequer em relação à imunização que a própria infecção confere ao enfermo curado. Pessoas continuarão se contagiando e adoecendo por um período de tempo incerto e não sabido.
A pergunta que está sobre a mesa é a seguinte: até quando devemos manter o isolamento horizontal, se sabemos que o coronavírus continuará entre nós? O isolamento vem acompanhado de uma paralisação das atividades econômicas e traz um séquito de desgraças, a saber: recessão, fechamento de empresas em cascata, desemprego, redução de salários, queda do consumo, descrédito de investidores e aumento do risco Brasil, perda de valor das empresas, desvalorização da moeda, redução proporcional das receitas públicas e, consequentemente, da capacidade de o setor público dar conta de suas atribuições essenciais. Se quem pode mais, como a Petrobras, fechou o trimestre com prejuízo recorde, imagine-se a situação de quem pode menos.
Convivem hoje dois consensos bastante amplos. Segundo os profissionais da saúde, é necessário manter o isolamento para “achatar a curva” e reduzir a pressão sobre o sistema de saúde, e evitar a mortalidade por incapacidade assistencial. Segundo o mundo do trabalho, ou seja, o setor privado produtivo, é preciso retomar atividades, com as devidas precauções, para evitar a miséria e suas consequências fatais sobre os segmentos mais frágeis da sociedade, a saber, entre muitas outras: falta de recursos fiscais para irrigar o sistema público de saúde e sobrecarga desse sistema por abandono dos planos privados, desemprego, desabitação e aumento da população de rua, subnutrição.
Junto a todos os louvores aos profissionais da saúde atendendo na ponta do sistema, contraindo a enfermidade, morrendo durante seu empenho em curar os outros, contrastando a nobreza de sua tarefa com a vilania da politicagem e da corrupção, sei que a Ciência, tão exaltada quanto necessária nestes tempos difíceis, sofre maus tratos em certas mãos. Por que será que a OMS me vem à mente enquanto escrevo?
Numa visão distópica, se ninguém sair de casa e ali ficarmos assépticos, passando álcool gel, teremos deixado o vírus à míngua, mas escreveremos o posfácio da civilização. Caberá aos sobreviventes escrever o futuro. Repito, é uma distopia.
Penso que o debate sobre o mais grave problema da humanidade neste período de protocolos, quarentena, isolamento horizontal, vertical e lockdown não pode – em hipótese alguma – cair na ideologização. Neste estreito e raso patamar, as Ciências relacionadas à Saúde são vistas como cuidadoras da humanidade e a Economia como ciência cuidadora do dinheiro... Essa é uma visão realmente estreita e terrivelmente ideológica. A Economia como Ciência, ou substantivada como atividade econômica, liga-se inteiramente, por preposição, à vida e sobrevivência do ser humano! A Economia é para pessoas, de pessoas, com pessoas, por pessoas, sobre pessoas, mediante pessoas.
Associá-la exclusivamente a dinheiro é desconhecer o que a torna essencial, inclusive para que as Ciências da Saúde avancem e proporcionem a todos o bem que a elas corresponde. Na prática, é preciso saber como conciliar as condições de sobrevivência com as de proteção da vida.
A melhor solução será aquela que minimizar as duas perdas defasadas na linha do tempo, mas significativas e reais: as mortes causadas pela doença e as mortes determinadas pela miserabilização da sociedade. Receio estarmos andando pelo pior dos mundos, com o maior dano em ambos os casos.
Percival Puggina - Membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor
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