Era uma vez uma mulher que não saía de casa desde sabe-se lá quando.
Durante todo esse muito tempo, sua rotina consistiu em fazer mini-esterilizações de todos os produtos que chegavam pelos serviços de entregas.
Garrafa pet, saquinho de biscoito, blister de Neosaldina, cartela de aspirina, embalagem de detergente, sachê de amaciante, bandeja de sobre-coxa, caixinha de Maizena e tudo mais que você possa imaginar.
Antes de entrar em seu templo asséptico, qualquer produto levava duas borrifadas de gel desinfetante e passava – no mínimo – uns cinco segundos na intimidade melada de um perfex azul possuído por meia garrafa de álcool 70.
Um belo dia, ela olhou para o saco de feijão e começou a sentir pavores.
E se ali dentro tivesse um vírus? Nem titubeou!
Abriu-o e, munida de luvas cirúrgicas recém chegadas da Venâncio, esfregou grão por grão, com escovinha e sabão de côco.
No almoço, a família estranhou um pouco a aparência anêmica do caldo, mas ninguém reclamou.
Na tarde seguinte, cismou com as compras do sacolão.
Ora, bastava uma única batata contaminada para o contágio fatal!
Sem demora, encheu bacia com água sanitária e arremessou tudo lá dentro.
Tudo, tudo! Abacaxi, laranjas lima, cebolas, pepinos, alface, salsinha e batatas. Tudo. Alvejou a horta toda.
Na mesma noite, já deitada, teve um insight sinistro e deu um berro.
– O que foi, meu amor? – perguntou o marido.
– Hoje não ouvi o zelador aqui no nosso andar.
Pulou da cama, vestiu o macacão vinílico comprado no Mercado Livre e calçou a bota preta de PVC cano longo, presente – ainda não usado – de dia das mães.
Luvas amarelas nas mãos e faceshield no rosto, partiu para a limpeza do corredor.
Lavou cada centímetro de piso e todos os pedaços da parede, do chão ao teto, do teto ao chão.
Passou álcool gel nos interruptores de luz, nos lustres, nas lâmpadas e nos pequenos pedaços de fio que fugiam do rebaixamento de gesso.
Entusiasmada, resolveu passar Lysoform no elevador inteiro, e, após apertar por engano botões de outros andares, decidiu estender seus cuidados aos demais corredores.
Sétimo, sexto, quinto, quarto, terceiro e segundo.
Gastou dez litros de Peroxi 4d e um tonel de Pinho Sol.
No térreo, prosseguiu confiante com a desinfecção, facilitada em parte pela superfície lisa do porcelanato polido.
Dificuldade maior só foi acontecer na guarita de entrada, quando a mulher percebeu que o porteiro estava com coriza.
Ela não teve dúvidas: jogou querosene e riscou um fósforo.
Aos berros, enquanto queimava, Danielson ainda tentou se defender, informando uma simples alergia, mas as chamas não paravam e a incendiária, que nesse instante passava cloro na grade externa do edifício, não estava em condições de ouvir nada, absolutamente nada.
Pronto, o prédio estava seguro.
Ela finalmente poderia dormir em paz, livre da ameaça mortal do vírus sem vacina.
De volta ao seu quarto, após revigorante banho fervendo, se deitou.
O esposo, acordado pelo ligeiro movimento do colchão, virou-se e deu-lhe uma encostada bastante íntima.
Ela se afastou e puxou para si o lençol.
Desguarnecido e pego de surpresa por uma súbita corrente de ar, o homem espirrou.
– Atchim!
Poucas horas depois, no café da manhã, com a boca toda suja de Nescau, o filho mais novo perguntou:
– Mãe, cadê o papai?
Alexandre Archer - Via rede social
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