A reeleição de Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia sempre foi ilegal. Agora, por decisão oficial do STF, continua sendo.
Apolítica brasileira anda tão ruim hoje em dia, mas tão ruim, que até o Supremo Tribunal Federal, acredite se quiser, está conseguindo evitar que o Senado e a Câmara tornem as coisas ainda piores do que já são. Não é pouco, considerando-se quem são o Supremo, o Senado e a Câmara, mas aí está: os presidentes das duas casas do Poder Legislativo estavam contando com a cooperação dos onze magistrados top de linha do Brasil para baterem a carteira do público em plena luz do dia, com sua reeleição para os cargos que ocupam — e, desta vez, não deu certo. A reeleição de Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia sempre foi ilegal; agora, por decisão oficial do STF, continua sendo. É um alívio.
Naturalmente, se a lei valesse alguma coisa neste país — e se o Congresso não passasse a vida de quatro diante do Poder Judiciário —, o problema jamais teria aparecido. O artigo 57 da Constituição diz, com a clareza da tabuada, que nem o senador nem o deputado poderiam se reeleger na situação que ocupam no momento. Mas e daí? Se a Constituição diz que não pode, é só pedir para o STF declarar que pode; pronto, nas expectativas de ambos, o artigo constitucional que os atrapalha seria considerado inconstitucional e tudo estaria resolvido. Só que o STF, para surpresa de Alcolumbre, de Maia e da população em geral — ou melhor, dos que chegaram a prestar alguma atenção no assunto —, decidiu que continua valendo o que está escrito. Conclusão: não rolou.
Foi apertado, é claro — é mais fácil o camelo da Bíblia passar pelo buraco de uma agulha do que colocar os onze ministros do STF, ao mesmo tempo, do lado certo de alguma coisa. Nem é preciso dizer quem foi o líder dessa prodigiosa tentativa de dizer que um artigo da Constituição é contra a Constituição: o ministro Gilmar Mendes, com os companheiros de sempre. Na sua decisão, exposta ao longo de uma maçaroca de sessenta e tantas páginas de sintaxe torturada e argumentação incompreensível, com citações da História do Brasil que pouco têm a ver com os fatos da real História do Brasil, Gilmar sustentou que a Constituição permite a reeleição do presidente da República e, portanto, tem de permitir também a reeleição dos presidentes do Senado Federal e da Câmara dos Deputados. Os ministros do seu entorno disseram: “É isso mesmo” — e votaram, também eles, a favor de Alcolumbre e de Maia.
Não ocorreu a ninguém, pelo jeito, que está escrito na Constituição, expressamente, que a reeleição do presidente da República é legal, e que a reeleição dos dois chefes do Legislativo é ilegal — por esse motivo, a primeira é permitida e a segunda é proibida. Também não se levou em conta que a reeleição do presidente só se tornou possível porque o próprio Congresso Nacional, incentivado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, aprovou uma emenda constitucional com esse exato objetivo — e, desta vez, ninguém estava aprovando emenda nenhuma. Não são detalhezinhos como esse que vão parar um Gilmar, um Toffoli ou um Lewandowski. O único problema, no caso, é que eles ficaram em minoria. Faz toda a diferença.
O placar final foi outra novidade sensacional: 6 a 5 contra Alcolumbre e 7 a 4 contra Maia. Como assim, se os dois estavam querendo a mesma coisa? Entra, aí, a primeira grande contribuição do dr. Kássio, o recém-emplacado ministro do STF, ao direito constitucional brasileiro. No seu voto, Alcolumbre podia aplicar esse conto do vigário no contribuinte, e Maia não podia; daí a diferença entre as duas contagens. Se a virada de mesa desse certo, o presidente Jair Bolsonaro (que indicou o dr. Kássio porque, em suas palavras, os dois tomaram “muita Tubaína” juntos) iria fazer cabelo e barba: Alcolumbre, que é amigo profissional do governo, poderia se reeleger, e Maia, que decidiu fazer carreira como inimigo, não poderia. Não adiantou nada: no fim, os dois perderam.
Há pouca dúvida, quando se levam em conta os fatos, de que tanto Alcolumbre quanto Maia estão entre os chefes mais aguados que o Poder Legislativo brasileiro já teve nos últimos anos; é preciso voltar aos tempos de um Severino Cavalcanti, por exemplo, para ficar no nível do material que se tem hoje. O presidente do Senado vem do Amapá, possivelmente o mais atrasado dos 27 Estados brasileiros; seu último feito foi ficar durante dias num apagão que levou à suspensão das eleições municipais. O presidente da Câmara vem das miudezas da política local do Rio de Janeiro — o começo, o meio e o fim, aliás, de sua rixa permanente com Bolsonaro. Acreditou no que a mídia diz dele, e em suas próprias ilusões, para imaginar-se como um líder de estatura nacional; a partir do dia 1º de fevereiro próximo, como ex-presidente da Câmara, voltará a ser apenas Rodrigo Maia.
Vamos ver a partir daí, então, quanto um e outro vão realmente estar no topo do noticiário político e no cardápio diário do Jornal Nacional — ou se começarão a deslizar rumo ao exercício findo, como homens cujas ambições superam largamente os seus talentos. Isso não quer dizer, naturalmente, que alguma coisa ficará melhor por causa dos sucessores que terão. “Pelo retrospecto”, como se dizia antigamente nas corridas do Jockey Club, o Brasil terá mais do mesmo — ou sabe lá Deus o que, exatamente. Num país em que um Renan Calheiros é substituído por um Davi Alcolumbre, é melhor ficar quieto.
J. R. Guzzo - Jornalista
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