que poderia ter desistido de se envolver num tema de alta volatilidade; mas não recuou
Em outubro passado, J.K. Rowling, a escritora mais recompensada e rica do mundo, foi dada como morta.
A hashtag #RIPJKRowling dominou a esfera digital. Anônimos e atores famosos, propelidos para a celebridade por interpretarem adorados personagens criados por ela, uniram-se no linchamento virtual.
O crime da escritora foi ter falado sobre as realidades criadas pelo sexo, especificamente no caso de abrigos destinados a mulheres agredidas.
“Se o sexo não é real, a realidade vivida pelas mulheres globalmente é apagada”, escreveu ela, contrariando o mandamento número um de um dos assuntos mais voláteis do momento, o da identidade de gênero.
Acusada de um crime hediondo e imprescritível, transfobia, a escritora, ligada a causas progressistas, recebeu as simpatias apenas da direita ilustrada e de um ou outro dinossauro da antiga esquerda, dos tempos pré-históricos em que a liberdade de opinião era um direito sagrado.
Foi uma experiência massacrante, mas a criadora de Harry Potter demonstrou, como sua criatura, ter um enorme poder de resistência.
Agora, ela voltou ao assunto com dois argumentos. Primeiro, que o clima de medo criado em torno da complexa questão da transexualidade é deletério para todos.
“Muitos têm medo de se manifestar, temendo por seus empregos e até por sua segurança. Esse clima de medo não serve a ninguém, muito menos às pessoas trans”.
Segundo: não existem certezas absolutas e incontestáveis no caso de todas as pessoas que fazem a transição – aliás, como em tudo o que é humano.
Da mesma forma que a mudança pode ser uma experiência altamente satisfatória, abrindo caminho a uma vida em que não existe mais a dolorosa disparidade entre sexo e identidade, pode também ser motivo de frustração e arrependimento.
Essa é uma questão especialmente sensível na Grã-Bretanha, onde 70% dos casos de mudança de sexo ocorrem entre meninas adolescentes, um sinal de que existem pressões sociais para que jovens em dúvida sobre sua identidade sigam o caminho sem volta dos tratamentos hormonais e cirúrgicos.
J.K. Rowling disse que recebeu muitas mensagens de “mulheres jovens que lamentam as cirurgias irreversíveis a que se submeteram”.
“Acredito que todos devem ser livres para viver uma vida autêntica para si mesmos”.
“Acredito também que precisamos manter um diálogo com mais nuances sobre os direitos da mulher e sobre o grande aumento de meninas e jovens que buscam fazer a transição”.
A questão da precocidade potencial dessas intervenções está sendo discutida no processo que a jovem Keira Bell abriu contra o único serviço da rede pública de atendimento a menores que se declaram transexuais, o Tavistock Center.
Keira, hoje com 23 anos, alega que não teve esclarecimentos adequados quando, depois de três consultas, passou a receber bloqueadores de hormônios femininos aos 16 anos, de acordo com seu desejo, na época, de se tornar um homem trans. Aos 20 anos, ela fez mastectomia dupla para extirpar os seios.
Hoje, diz que crianças e adolescentes como ela, com disforia de gênero, precisam de atendimento psicológico adequado e não do “modelo automático” da terapia com bloqueadores de hormônios da puberdade.
Não é preciso ser especialista para perceber como questões assim são complicadas. E como o desejo de fazer o bem – adequar as pessoas ao gênero com o qual se identificam -, pode provocar, involuntariamente, o efeito contrário.
Debater aspectos dessa estirpe deveria ser natural e até obrigatório quando estão envolvidas questões tão fundamentais, principalmente no caso de menores.
Que J.K. Rowling tenha sido linchada virtualmente por ter dito uma obviedade dessa natureza fala muito sobre o “clima de medo” agora mencionado por ela.
Vilma Gryzinski - Jornalista
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