terça-feira, 7 de abril de 2020

A imbecilidade da ditadura da maioria ✰ Artigo de J.R. Guzzo

Dizer que isso ou aquilo “não é possível” porque a maioria, ou todos os outros, afirmam o contrário, é um disparate 

O ministro Marco Aurélio Mello, que junto com os seus colegas de STF vem caridosamente nos poupando, nestes tempos de cólera, da sua visão sobre o Brasil e o universo, parece que não resistiu ao próprio silêncio. Um dos lados bons do coronavírus – e quase tudo tem o seu lado bom nesta vida – foi confinar em quarentena verbal gente como Marco Aurélio e outros cérebros da nossa “Suprema Corte”, ventura que nos é negada em épocas menos aberrantes. Que alívio, não? Pararam de falar um pouco. Mas alegria de pobre não dura muito. Como num desses arranques heroicos de cachorro atropelado, descritos com tanta graça pelo gênio de Nelson Rodrigues, Marco Aurélio reapareceu, de repente, para dividir conosco as suas últimas meditações. “Não é possível que o mundo inteiro esteja errado e o presidente Bolsonaro esteja certo”, disse ele. Parece bom senso. É apenas uma bobagem.
Marco Aurélio jamais foi acusado de ser um pensador brilhante – ou, então, sempre tomou cuidados extremos para não deixar que nenhuma ideia original, ou apenas interessante, aparecesse em nada do que disse ou escreveu em seus 30 anos de presença no STF. (Está tudo registrado nos computadores; não dá, realmente, para criar uma “narrativa” nessas coisas. Ou o sujeito brilhou ou não brilhou. Fim da história). A atitude prudente, nesses casos, é ficar quieto o máximo que for possível, para não chamar atenção sobre o que realmente existe na sua cabeça – e sobretudo sobre o que não existe. Mas o ministro Marco Aurélio, pelo seu histórico, não gosta de deixar dúvidas a esse respeito.
No caso deste último comentário, o presidente Jair Bolsonaro pode, realmente, não ter razão nenhuma. Na verdade, pode estar monstruosamente errado. Já errou feio no passado; vai errar feio, de novo, no futuro, sobre este e muitos outros assuntos. Mas se estiver errado é porque está errado mesmo – e não porque “o resto do mundo” acha que está. Primeiro, não é “resto do mundo” que discorda dele. Muita gente concorda com o presidente, o que também não prova coisa nenhuma; ele e os que compartilham o seu ponto de vista podem estar errados, tanto quanto os que discordam. O certo e o errado, aí, serão definidos pela ciência e pela repetição dos resultados obtidos através da experiência prática.
Dizer que isso ou aquilo “não é possível” porque a maioria, ou todos os outros, afirmam o contrário, é um disparate. Por essa maneira de se raciocinar, o ministro Marco Aurélio, como magistrado do Santo Ofício no começo do século XVII, chamaria os jornalistas e diria: “Não é possível todo o mundo estar errado e só o Galileu Galilei estar certo”. A mídia, sob o peso dessa revelação, repetiria com reverência o ministro – e a Terra continuaria a girar em volta do Sol. Não “é possível”, para Marco Aurélio, que só Santos Dumont estivesse certo ao dizer que o homem poderia voar, ou que só Edison tivesse razão sobre a luz elétrica e mais mil coisas da mesma família. É um princípio elementar, coisa que se ensina no ginásio, que a verdade não depende do número de pessoas que acreditam nela, nem de pesquisa do Datafolha. Se “todo mundo”, como diz o ministro, achar que 2 mais 2 são 7, e só uma pessoa no mundo achar que são 4, como é que fica?
Falar sem pensar dá nisso.
J. R. Guzzo - Jornalista

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