Dizem que o fazem em nome do império da lei, mas um país não pode ser, ao mesmo tempo, império da lei e do crime.
Era o mês de maio de 2016 quando a força-tarefa da Lava Jato gravou um diálogo entre o então senador e ministro Romero Jucá e o ex-senador e ex-dirigente da Transpetro Sérgio Machado. Nessa conversa, o poderoso ministro peemedebista disse ser preciso “mudar o governo para estancar essa sangria”.
A sangria era a Lava Jato. À época, a situação lembrava as antigas filas para confissão às vésperas do domingo de Páscoa. Todos querendo retomar o estado de graça. Corruptores e corruptos, empresários poderosos, políticos de prestígio, gente acostumada à boa imagem, aos paparicos da lei e das autoridades, que circulavam nas ruas entre abanos e abraços, acusavam-se mutuamente, empilhavam provas, devolviam dinheiro roubado. E cochichavam com seus solenes advogados.
O que causara tão febril agitação? O que mobilizara tanto as cotidianas alvoradas da Polícia Federal, antecedidas por mal dormidas noites no interior dos apartamentos onde a campainha soava com invulgar determinação? Os gravíssimos e vultosos crimes cometidos tinham encontro marcado com a prisão, logo ali adiante, após condenação em segunda instância. Nada, em momento algum, se revelou tão modelador de consciências, causa de tanta virtude e de sinceros arrependimentos quanto a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância.
A nação exultava! O que seria normal, comum em qualquer país que não mantivesse relação tão íntima e criativa com a apropriação dos recursos públicos, no Brasil virou livro, virou filme e levou às alturas o ânimo nacional. O Brasil se tornou casa de família. A castidade se mudara para o lupanar. Feéricas, acendiam-se as luzes; arejavam-se os dormitórios. Ah, a “sangria” era saneadora!
Nas palavras do senador Romero, porém, impunha-se estancá-la. Aquilo não era aceitável. As afinidades gemiam no STF. A porta da felicidade se abria, ou a roda da fortuna girava nos habeas corpus de corruptos. Gilmar Mendes, entre inquietos goles de água, assustava a nação afirmando que um dia o STF iria se debruçar sobre aquelas condenações que já se acumulavam em três instâncias. A Lava Jato começou a morrer no dia 7 de novembro de 2019, quando o Supremo, por 6 a 5 postergou o cumprimento de pena para após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Ou seja, quando acabar o dinheiro do réu para manobrar nos meandros do CPP. Assim como a rota do tráfico, voltou a operar no Brasil a rota da chicana, a rota da prescrição.
Tudo isso acontece ao arrepio da vontade nacional, com complacência de um Congresso que se recusa a alterar a Constituição e a instituir, com clareza, a possibilidade, comum às nações civilizadas e avessas à impunidade, de serem as penas cumpridas após condenação em segunda instância. O quadro se completa com a provável anulação das penas impostas pela Lava Jato.
Iludem-se os inimigos da pátria. Levaram quase cinco anos para estancar o que Romero Jucá chamou de sangria. Dizem que o fazem em nome do império da lei, mas um país não pode ser, ao mesmo tempo, império da lei e do crime. Pensem bem, senhores do poder, antes de agir. Ou de se omitir.
Percival Puggina - Membro da Academia Rio-Grandense de Letras e Cidadão de Porto Alegre, é arquiteto, empresário e escritor
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